Pensar o futuro da arte não é o mesmo que pensar o futuro. Enquanto pensar o futuro envolve refletir sobre os sistemas, as estruturas e as condições que o tornam possível, pensar o futuro da arte é um exercício de linguagem – assim como o foi atestar o seu fim ao longo da história. Como afirma a curadora Chus Martínez em seu livro The Complex Answer, “O futuro da arte será, pois é cínico afirmar que a arte não possuirá futuro”.
Contudo, pensar sobre o futuro da arte e não refletir sobre o que nos aguarda é tornar-se estéril à experiência especulativa que a envolve. Neste sentido, observar os seus movimentos é mergulhar em uma incursão pelos desafios do agora, com perspectivas singulares sobre as inquietações que nos afligem, ao passo em que janelas de observação para outros tempos se abrem no caminho.
Destaco aqui seis tendências da arte contemporânea que despontam no circuito de bienais, instituições e galerias ao redor do mundo. Os variados suportes, discussões e propostas sensoriais desse circuito são atravessados por um contexto global de tensões geopolíticas, crises climáticas, novas tecnologias e uma geração emergente que confronta compreensões rígidas de mundo enquanto lida com as suas próprias contradições.
Vale ressaltar, neste contexto, a relevância do cenário brasileiro como uma janela de experimentação dessas questões – percebida, por exemplo, na presença de Adriano Pedrosa como o primeiro curador latino-americano da Bienal de Arte de Veneza e, mais recentemente, com o programa Wametisé: ideias para um amazofuturismo, na ARCOmadrid 2025, com curadoria do brasileiro Denilson Baniwa e da colombiana María Wills, além de outras ações.
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Randolpho Lamonier... DEUSA CHANTIKO 2K20, 2020. Costura e bordado em tecido, 220 × 150 cm. © cortesia Galeria Portas Vilaseca e Verve.
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Arte têxtil
O ano de 2025 promete um interesse renovado em práticas de artistas que encontram na arte têxtil uma maneira de investigar tecnologias tradicionais. Seja como uma forma de valorizar tradições autóctones ou de subverter seu uso propondo novas configurações, artistas como Naine Terena (Carmo Jhonson Projects), Claudia Alarcón (Galeria Cecília Projects), Randolpho Lamonier (Portas Vilaseca e Verve Galeria) e Sonia Gomes (Mendes Woods DM) apontam para processos diversos de uma mesma linguagem.
Ao costurar memórias coletivas e experiências pessoais, a arte têxtil desfaz fronteiras entre o erudito e o naif, desafiando compreensões coloniais sobre a produção de grupos étnicos e de artistas autodidatas. Por outro lado, incita um debate sobre distinções de gênero que, ao longo da história, mantiveram práticas vistas como femininas à margem.
Hoje, essas pesquisas também examinam as condições de produção em massa de milhares de peças e objetos decorativos por grandes empresas, não raramente envolvendo o uso de trabalho análogo à escravidão. Problematizando a precarização humana empreendida dentro das esferas culturais, sociais e econômicas, essas práticas questionam as condições dos materiais têxteis na máquina produtiva capitalista enquanto celebram saberes que lutam para não serem apagados.
Não figurativo
Buscando se diferir dos cânones da abstração, uma nova geração de artistas rejeita a categorização de suas práticas: esquivam-se da figuração e aproximam-se de materialidades e visualidades que miram o resgate de tradições ameaçadas por violências coloniais. Projetam, assim, horizontes reparadores mediante o uso de materiais não tradicionais, oriundos da natureza ou de elementos ritualísticos.
Nomes como Laís Amaral (Mendes Woods DM), Gilson Plano (Galeria Quadra), Ana Cláudia Almeida (Galeria Quadra), Julien Creuzet (Mendes Woods DM) e Tegene Kunbi (Primo Marella gallery) cruzam fronteiras entre pintura, escultura, instalação e performance, elaborando poéticas em que a vivência subjetiva orienta o percurso de suas experimentações materiais.
Se o desvio da representação propicia o exercício de identidades fluidas, difíceis de serem capturadas por agendas identitárias, a filiação à abstração é recusada como uma crítica contundente aos cânones modernos europeus (principalmente no contexto brasileiro, cujo modernismo é equiparado à vanguarda modernista internacional), convidando-nos a um encontro orquestrado pela matéria e pela composição.
Ecologias queer
Sistemas de vida desviantes foram oprimidos ao longo da história – e isso não se restringe à experiência humana. A ecologia queer é um campo de estudos que propõe uma ruptura entre natureza e cultura, valendo-se de uma abordagem que investiga como paradigmas binários e normativos moldaram historicamente a compreensão da natureza.
Tal perspectiva busca descortinar existências que escapam a categorizações rígidas, abordando, por exemplo, a relação entre o mesmo sexo encontrada em várias espécies, a interação entre os reinos dos fungos e das plantas, cruzamentos ecológicos entre natureza e tecnologias ancestrais e científicas, entre outros.
Artistas como Castiel Vitorino Brasileiro (Mendes Woods DM), Zé Carlos Garcia (Portas Vilaseca e Triângulo), Dan Lie (Barbara Wien Gallery), Kira Xonorika e Seba Calfuqueo (Galeria Marilia Razuk) deslocam o humano do centro de agência para imaginar configurações entre espécies, promovendo compreensões de mundos mais fluidos e interconectados. Ao cruzar corpos minerais, vegetais e animais, a metamorfose torna-se, acima de tudo, uma estratégia artística para a elaboração de novas compreensões sobre ecologias que congregam a história da vida em um sentido amplo.
Arte digital
Quarenta anos nos separam da primeira publicação do Manifesto ciborgue – ciência, tecnologia e feminismosocialista no final do século XX (1985), ensaio emblemático da bióloga e filósofa norte-americana Donna J. Haraway (1944 –) que propunha uma reflexão das relações sociais mediadas pela tecnologia.
Embora, olhando em retrospectiva, algumas considerações de Haraway sobre o potencial emancipador dos avanços tecnológicos frente à dominação ocidental pareçam excessivamente otimistas, é assombroso notar como a relação entre o ser vivo e a máquina, o orgânico e o inorgânico, norteiam nossa interação com o mundo hoje. Mais recentemente, as disputas em torno do desenvolvimento de inteligências artificiais e a constante inovação das tecnologias criativas insinuam um rápido novo salto na maneira como nos relacionamos com o outro.
Nomes como Gabriel Massan (Galeria Yehudi Hollander-Pappi), Vitória Cribb, Biarritzzz, Andrew Roberts e o coletivo Lu Yang criam ambientes imersivos, videoinstalações e imagens generativas que propõem não apenas a miragem digital como um desarticulador sensorial, mas também investigam as condições materiais e econômicas que tornam tais cenários possíveis. Essas experiências desestabilizam, ainda, concepções fixas sobre identidade e gênero, visto que a “avatarização” de corpos é um princípio fundamental desses contextos.
O retorno da performance
Se, por um lado, a experiência contemporânea é marcada pela aceleração e digitalização das interações sociais, por outro, a arte contemporânea também propõe o retorno da performance e do happening como estratégia para convocar a presença. Isso ocorre, entretanto, na conjuntura de um mercado de arte internacionalizado, aquecido e onipresente, que permeia escolhas e relações institucionais.
A interação de meios tradicionais – pintura, desenho e escultura – com ativações presenciais aparece em práticas como as de Maxwell Alexandre e o coletivo A Noiva (Almeida & Dale), Jota Mombaça (Martins&Montero), Luana Vitra (Mitre Galeria) e La Chola Poblete (Travesía Cuatro), que densificam suas investigações materiais a partir do próprio corpo e da presença do público.
O desafio é, todavia, emancipar essas experiências em museus e galerias, cujas lógicas simbólicas operam na chave mercadológica da fetichização do objeto artístico. A negociação dos artistas em torno das pressões do mercado e da possibilidade das poéticas do corpo abre espaço para a elaboração de práticas indissociáveis à relação entre público, espaço e tempo vivido.
Projetos site-specific
Inspiradas nos estudos decoloniais e nas práticas de bem viver próprias dos grupos étnicos e racializados, iniciativas que associam a criação artística à transformação social ganham relevância ao promover valores de aquilombamento e coletividade. Exemplos como o Sertão Negro (Goiânia, Goiás), de Dalton Paula (Martins&Montero), a Terra Afefé (Ibicoara, Bahia), de Rose Afefé (A Gentil Carioca), e o Nhà Sàn (Hanói, Vietnã), de Trần Lương evidenciam o comprometimento de artistas com suas comunidades, fortalecendo a ação social que impulsiona um futuro material.
Além disso, tais projetos atualizam o sentido de site-specific, à medida em que passam a ser compreendidos também como espaços de concepção coletiva, dotados de uma função social, porém jamais delimitados em seu potencial de inventividade.
Em menor escala, mas igualmente importantes em seus respectivos contextos, vale destacar, ainda, artistas e coletivos que se dedicam à criação de espaços de experimentação – muitas vezes operantes entre o comercial, o institucional e o educacional – com o intuito de ampliar o debate cultural e atuar em pautas sociais. Este é o caso do Massapê Projetos (São Paulo, Brasil), conduzido pelo artista Mano Penalva (Simões de Assis e Portas Vilaseca), da GDA (Galeria de Artistas – São Paulo, Brasil), gerida por Bruno Baptistelli (Luisa Strina) e Carolina Cordeiro (Galatea), e Ruby Cruel (Londres, Reino Unido), iniciativa de Blue Curry.
BÔNUS: Geração Z
Discutir se a inserção de nomes abaixo dos trinta anos é um atestado de qualidade do trabalho, do puro domínio dos códigos da arte contemporânea ou apenas reflete a voracidade do mercado de arte é como debater a ordem de aparição do ovo e da galinha.
Paradoxos à parte, a mudança de paradigma e as perspectivas em relação à vida dos novos adultos da geração Z – nativos digitais, socialmente engajados e mentalmente vulneráveis – são sentidas em diversos segmentos, e seria impossível não perceber esse tremor no circuito da arte. Jovens artistas como Arorá (Galeria Quadra), Talles Lopes (Cerrado Galeria), Arthur Palhano (Portas Vilaseca), River Claure e Nour Jaouda propõem novas noções de mundo em pesquisas que apresentam sólidas defesas e grande amplitude de desdobramento para os anos que se seguirão.
Ainda que a história e o impacto social sejam grandes questões para essa nova safra, uma realidade moldada digitalmente que beira o delírio – na qual a distinção entre verdadeiro e falso é insuficiente – torna suas poéticas tão provocativas quanto instigantes. Isso sem abdicar, contudo, de uma carga nostálgica prestada a certos suportes e técnicas mais tradicionais – há quem afirme, inclusive, que essa geração é mais conservadora que as anteriores.
Como integrante dela, prefiro acreditar que se trata de um novo modo de articular passado, presente e futuro, em que elementos são livremente resgatados e remixados. Trata-se, não obstante, de uma geração um pouco ingênua – e talvez seja este o frescor necessário para encarar nossos tempos.