Fundação Eva Klabin
para-ninguém-e-nada-estar
Leila Danziger
Primeiro de janeiro de vinte70

Primeiramente, quero alertar o leitor: esta escrita sobre Leila é afetada por uma relação de mestre e aprendiz. Tudo o que sei de mais valioso sobre a arte aprendi em livros e aulas, mas Leila é a pessoa que calibrou minha sensibilidade em torno de tais tópicos e discussões. Se faço questão de ressaltar essa informação para aquele que lê, não é por puro impulso de tecer floreios a seu respeito, mas porque isso descreve uma marca importante de tempo que ultrapassa qualquer dado material em seu trabalho. Instituições, como exposições e pesquisas, são, antes de tudo, relações pessoais e não renuncio a isto.

Leila é uma aficionada pelos vestígios do mundo. Uma coletora de “agoras”, o único tempo humano que conseguimos habitar e que, em nossos impulsos nostálgicos, reavivamos por alguns instantes. Em sua prática, a artista investiga uma série de elementos que outrora denotaram tal instante de vivência tão difícil de agarrar — jornais e impressos de todos os tipos, mas também hiperlinks de notícias, carimbos e imagens à deriva. Num processo que interpela a poesia e a escavação (que talvez sejam a mesma coisa em seu âmago), Danziger opera por métodos de subtração e adição que conferem atualidade ao que se apagou num desejo ativo de luta contra o esquecimento. Aqui, apresentamos a obra Diários públicos (2010), pensado a partir do poema Tübingen, Januar (1965) do poeta romeno Paul Celan, para tratar de seu gesto de apagamento de noticiários, comprados dia a dia, e subtraídos de informação por meio de fitas adesivas que, na instalação, ocupam a mesa e escorrem para o entorno da casa. Ao fundo, um vídeo intercala cenas de jornais sem destino que sobrevoam a cidade com registros de sua própria interferência neles. Balbuciante, a repetição da expressão Pallaksch Pallaksch serve como sugestão sonora para as tiras que interferem a matéria impressa.

 

Inicialmente, o gesto obsessivo da artista pode denotar, em um primeiro momento, uma inconformidade acerca do flagrante escape disso que chamamos de presente. Contudo, ao observarmos Para-ninguém-e-nada-estar (2006-2010), a prática parece sugerir um outro desejo. Obtido pela retirada de textos que encapsulam as imagens de notícias e publicidades cotidianas e a incisão da frase-título em tinta vermelha de carimbo. Assim como o neologismo de Celan, lança tais páginas no abismo de um não lugar, tanto espacial como temporal e, principalmente, impessoal. A arte opera por vias paradoxais, sabemos: o resultado da subtração não é zero, mas poesia. Debruçada sobre os jornais, Leila toca em um tempo linear, datável e contínuo, sepultando uma das matérias que o tornam visível e modificando a linguagem da informação para transformá-la na imagem da esfinge.

Já na Sala Verde, a artista posiciona seis obras da série Bailinhos (2022). Trata-se de impressões fotográficas do acervo do Museu Judaico de São Paulo sobre espelhos. Leila retorna a fragmentar imagens, superpondo o reflexo do visitante com a da pequena menina que, fantasiada, prepara-se para pular o carnaval. A imigração judaica se aclimata à farra popular brasileira, tecendo um olhar para tal movimento histórico mesclado na candura do tema à violência do apagamento. Como uma pele que descasca, o reflexo interpela a memória de dois tempos — no caso de Leila, também judia, esse estabelece ainda uma relação de ancestralidade. Talvez o fantasma de Eva se veja refletida em tais objetos, quiçá lançando olhares para a criança e desejando desfrutar das delícias da festa da carne. No cruzamento das temporalidades, lidas simploriamente como passado e presente, um terceiro tempo desafia a compreensão dessa aproximação — a de um tempo espiralar, que vai e volta, amplia-se e comprime. Libera as duas de seus lugares de pertencimento e as liberta para bailar, juntas. Tal qual o jornal de Pallaksch Pallaksch, que dança com o vento na deriva das ruas.

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