OK/Cancel / Entrevista com Elias Maroso
Elias Maroso
Dezoito de maio de vinte21

Lucas Albuquerque: O trabalho “OK/Cancel” consiste em um projeto com placas de circuito realizadas de forma manual, que funcionam como bloqueadores de sinais de telefones celulares 2G, 3G e 4G. Optar pela apresentação deste trabalho em um espaço expositivo envolve, portanto, a limitação de acesso que o espectador terá com o mundo exterior, enclausurando-o no aqui e agora do trabalho. Questões referentes ao dentro e fora, entrada e saída, também são caras a trabalhos que você desenvolveu anteriormente, como “Encontrar uma saída” e “Saída pelas Frestas e Entrelinhas”. Que função o deslocamento desempenha em sua poética e como o embaralhamento sensorial da circulação dos corpos pode propor uma outra experiência estética ao espectador?

Elias Maroso: A proposta “OK/Cancel” foi concebida dentro de uma série de trabalhos voltados ao atravessamento do espaço, sobre tornar tangíveis dinâmicas coextensivas entre o dentro e o fora em diferentes abordagens, seja de leitura subjetiva ou crítica. Isso me levou a produzir intervenções a céu aberto, instalações específicas que problematizam o confinamento disciplinar da arte e, também, a construção de circuitos eletrônicos emissores de ondas eletromagnéticas, capazes de transpassar fisicamente as paredes de recintos expositivos. Antes de “OK/Cancel”, já havia me aproximado de dispositivos mais simples envolvendo o eletromagnetismo, como espirais pulsáteis e radiotransmissores FM. Essas investigações persistem como repertório prático nas atividades que realizo hoje em dia.

É importante pontuar que, no processo criativo, a elaboração de mapas mentais e diagramas é recorrente nas etapas preliminares de todas as propostas artísticas desenvolvidas até agora. Ao introduzir princípios da engenharia eletrônica, o diagrama que permanecia como esquematização de termos abstratos passa a tomar a forma de um dispositivo que provoca efeitos físicos na concretude, a transição da imaterialidade abstrata para uma imaterialidade física – pois as ondas eletromagnéticas não apresentam a mesma fisicalidade de partículas/objetos materiais da natureza. Pela radiodifusão deixei de apenas indicar um interesse pelo atravessamento indisciplinado do espaço expositivo da arte para introduzi-lo como efeito concreto de passagem. Vejo nesse percurso um movimento de desutopização, ou seja, trazer ao espaço partilhado e vivido intenções que se mantinham sem lugar, somente na atribuição de abstrações mentais.

O aprendizado autodidata de diagramas emissores foi uma conquista prática muito relevante nessa trajetória. De forma concreta, a produção estava em mais de um lugar ao mesmo tempo, pois essas emanações energéticas invisíveis têm a propriedade de atravessar a matéria. Se me permite um exercício esquizóide de pensamento, poderia dizer que, da “perspectiva da onda eletromagnética”, a parede branca da sala expositiva é transparente, completamente transpassável. Por outro lado, ao me envolver com esses recursos poéticos, deparei-me com a vertiginosa quantidade de transmissões que atravessam nosso tempo. Quando “deixo transparente” a parede branca e disciplinar da arte não apenas saio ao espaço de fora como também uma quantidade impensável de ondas entra em seu espaço interior. Não é muito evidente, mas o sistema da telecomunicação digital opera por princípios da radiodifusão e dita o ritmo de nosso cotidiano.

Diante disso, “OK/Cancel” busca criar um intervalo de comunicação como um campo de força em escala doméstica, não massiva. Reivindicação de uma solitude pensante e criativa que é continuamente colonizada pelas ondas informacionais dos dias de hoje. Procuro evocar, ainda que por um instante e curto período de tempo, um hiato informacional. Note que não se trata de tecnofobia, de rechaço aos dispositivos da Era Digital 2.0. Está para uma disposição de profaná-los, interferindo com mãos próprias sobre essa lógica, uma abertura de sua caixa-preta. Vale-se da própria tecnologia para marcar outra postura diante do controle comunicacional e totalizante tão presente na contemporaneidade, na rotina de nossas vidas.

LA: Na descrição do trabalho em seu portfólio, você afirma que “A noção de espaço deixa de ser apenas uma para variar em diferentes atmosferas. Dá vez a uma arte que não cabe em um lugar só”. A variação da arte em diferentes atmosferas pode remeter à ideia de reprodutibilidade, cara a pensadores como Walter Benjamin e André Malraux. No entanto, em trabalhos como “OK/Cancel”, você limita a reprodução de seu próprio trabalho nas redes pela interferência nas ondas de celular. Se a arte não cabe apenas em um lugar, por que ainda é tão caro prezar pelo aqui e agora da experiência estética?

EM: Quando falo sobre a transposição do espaço unitário para variações de atmosfera, procuro dizer que a arte pode ser realizada em mais de uma circunstância, em mais de uma única prescrição disciplinar ou campo especializado. Walter Benjamin fala da vantagem de uma reprodutibilidade técnica mantendo o imaginário de que um tipo de Arte sofisticada poderia ser difundido às massas. Apesar de ainda ser hegemonizado por cubos brancos, o termo da arte pulsa em diferentes ofícios, sejam ou não legitimados pelo sistema dominante. É um termo comum em variados lugares da sociedade e seria um tanto problemático dizer o que não pode ser uma atividade artística.

Além disso, por mais que seu conceito tenha surgido de uma visão ocidentalizada sobre um tipo específico de produção da imagem, é possível extrair dessa Arte que se apresenta com A maiúsculo dentro de aparelhos instituídos recursos emancipatórios da linguagem, táticas para dessacralizar sua atividade e, quem sabe, atingir efeitos na vida prática. Enquanto pessoa dedicada a esse ofício da linguagem, procuro estabelecer uma minoração dessa Arte que se coloca majoritária. Situá-la em relação horizontal com as outras tantas práticas que se apresentam como artísticas. Saída da Arte através da arte. Distancia-se, portanto, do contexto unitário de códigos para sua realização. Como uma onda eletromagnética, atingir mais de um lugar ao mesmo.

“Ok/Cancel” é concebido tanto em forma de objeto artístico como um tutorial aberto a qualquer pessoa interessada a produzir o seu próprio campo de força em perímetro doméstico. Não quer dizer que precisa ser reproduzido de maneira idêntica, mas aplicar seu diagrama esquemático de um jeito próprio. Nesse caso específico, não vejo essa proposta limitada a um lugar só, pois abre seu código para outras aplicações autorais.

LA: Outro elemento constituinte do trabalho “OK/Cancel” é um vídeo que ensina ao espectador como montar o seu próprio circuito bloqueador de sinais. Você entende essa ação como uma prática de guerrilha? Qual o seu desejo em tornar acessível este tipo de prática?

EM: Abrir o código de seu funcionamento segue um princípio de compartilhamento muito frequente em praticantes da engenharia elétrica amadora. O próprio esquema de componentes eletrônicos utilizado nesse trabalho derivou de outros projetos, dando continuidade a um processo partilhado de aprendizagem e aperfeiçoamento técnico. Muitos tutoriais são disponibilizados em plataformas online e a presença do passo-a-passo de “OK/ Cancel” no Youtube, por exemplo, parte desse princípio para estabelecer um jogo de ser simultaneamente cúmplice e rival da plataforma e das ondas informacionais. A colisão do comando positivo (ok) com o comando negativo (cancel). Seu funcionamento é muito instável e mínimo. Tem pouca eficiência, se comparado a bloqueadores de celular industrializados. Está mais para um convite de autonomia tecnológica. De certa forma, tem seu teor de guerrilha, se considerarmos que os saberes de eletrônicos são enfaticamente restringidos pela simbiose do poder econômico e estatal.

LA: A placa de circuito chama a atenção pela tipografia que circunda suas bordas, cujo desenvolvimento é do próprio autor. Seu grafismo condensa tanto a aparência de um projeto visual futurista como vestígios de uma escrita ancestral e orgânica. Como o tensionamento entre esses tempos distintos marcam a sua produção?

EM: A tipografia utilizada em “OK/Cancel” é mais uma produção disponível para usos de autores interessados e está presente em ensaios gráficos, instalações e intervenções urbanas. Chama-se “Recombinante.ttf” e pode ser baixada gratuitamente pelo seguinte endereço eletrônico: https://www.dafont.com/pt/recombinante.font. Nessa versão aplicável e online, já foram mais de 5.500 downloads. É sempre gratificante receber o retorno criativo de algum usuário, inserindo sua tipografia em produtos gráficos e poemas visuais. Indica-me certa vitalidade sígnica, uma propagação poética pela recombinação.

Sobre o aspecto futurista ou de caráter ancestral, diria que esse efeito aparece como acidente compositivo muito bem-vindo. Foram inúmeros os arranjos formais testados na projeção de sua uma placa de circuito impresso para chegar a esse resultado. Acredito que muito desse aspecto orgânico se deve ao emprego das cores, do qual a tonalidade de ocre e o cobre metálico correspondem ao material convencionado para a produção de circuitos artesanais (composto de fenolite). As inserções gráficas em preto e branco são máscaras de solda inseridas mais como marcação e índice gráfico do que cumprem alguma função no sistema. De todo modo, há elementos visuais recorrentes na poética que desempenho, como a presença do círculo e das faixas de texto contínuo. Igualmente identifico um interesse pela precisão técnica, mimetizando artesanalmente procedimentos de fabricação seriada de aparelhos eletrônicos.

LA: A fronteira entre o ver/não ver também é um tema caro à sua produção, como mostra a série “Criptocromo”. Além disso, as serigrafias “I agree to the terms and conditions of use” e “ok, ok, ok” impõem um mantra de aceitação à termos ou acordos dos quais não temos acesso. Quais são os desdobramentos desse tópico no trabalho “Ok/Cancel” e nas serigrafias?

EM: Na instalação “Criptocromo” redimensiono poeticamente estudos em biofísica quântica que procuram simular a capacidade visual que espécies de aves migratórias têm de perceber o imenso campo eletromagnético de nosso planeta. Desloca o aparelho visual humano como a medida primeira na percepção das coisas do mundo. Há inúmeros fenômenos que não podemos enxergar. No caso dos sistemas comunicacionais, a invisibilidade das ondas eletromagnéticas está presente em nossa rotina, levando-nos a tomar decisões em modo automático. Não é surpreendente o tanto de acordos que consentimos pelo uso de aplicativos digitais? Nas serigrafias “Ok, Ok, Ok” e “I Agree To The Terms and Conditions of Use” apresento repetições de palavras e frases como um imenso emparedamento codificante, comandos pouco evidentes às multidões de usuários da cultura digital. Com esses e outros trabalhos, busco trazer à tona essa instância do cotidiano que, em boa parte, é secretada e abastecida por aparelhos e perfis individuais.

LA: Como seu trabalho abre possibilidades para a imaginação de outras realidades?

EM: Acredito que a arte em uso tático está para mexer com a linguagem e os códigos do cotidiano de um jeito que mostra o que não cabe em salas fechadas, em estratégias de controle. Por certo, não é um efeito garantido. Várias produções chanceladas pelo termo da arte prestam reverência ou anseiam ocupar somente espaços hegemonizantes. Exige um empenho atento a uma vitalidade criativa que precede as formas reconhecíveis, uma vontade de não estar em um lugar só. Vivemos uma época de imaginário atrofiado, conformados com a criação compartimentada em tarefas específicas. Alimenta-se a noção de que o “fora” é impossível e que a realidade dos dias não apresenta outra saída. A conformidade de dizer que não há saída possível, que tudo está capturado pela ordem dos dias. Entendo a criação como uma vontade de superar a si mesmo, o que já foi visto, formulado. Uma inquietude que vem antes da captura e persiste, pois é própria da vida. Diante disso, nossa chance está em seguir à procura de saídas, uma após a outra, por mais impossíveis que possam parecer.

Muitos artistas e poetas fizeram da própria impossibilidade a condição de sua prática. Dedicaram-se a causas de aparência perdida. Evocaram o impensado, o indizível, o não-visto por um empenho cúmplice e rival da linguagem. Mostraram com estudos, ações, palavras e imagens o que não cabe nas coisas que são ditas diariamente. Abrem saídas do código excedendo o próprio código. Busco com os trabalhos que realizo pinçar sinais de possibilidade no emparedamento de diferentes contextos de inserção. Manusear esses sinais de um jeito que se tornam anômalos, não cabendo no próprio lugar desde onde começaram a aparecer. É um problema sem fim, pois cada saída conquistada é igualmente a entrada para novos desafios práticos. A cada atravessamento, tenho de pensar outros tantos em sucessão contínua. Pode ser que nenhum efeito esperado aconteça. Mesmo assim, persisto nesse difícil compromisso de criar passagens em face de cada parede que aparece pela frente e pelo verso dos olhos.

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LUCAS ALBUQUERQUE