Lucas Albuquerque: O neon escolhido para a exposição Futuração faz parte de uma instalação maior, que você denomina como “Luz com trevas”. O projeto inclui, além de peças em neon, filmes, performances, música e outras mídias. Como a visualidade do neon contribui para o conceito poético que você vem tentando desdobrar neste projeto?
Cabelo: Assim como a tinta, um metal, madeira, roda de skate, foto ou notícia de jornal, uma gíria, um ponto, um passe, o passinho, batida de funk, de limão, de tambor, o vídeo, a terra, o estrume, as minhocas, as plantas, as palavras, o neon é mais um elemento, entre uma infinidade de outros de que disponho, para fazer, dar à luz, oferecer minha poesia. Poesia falada, cantada, talhada em pedra, ou escrita e desenhada em linhas luminosas. Linhas luminosas que vejo, desde criança, quando fecho os olhos, luzes e visões que brotam da escuridão… assim como as visões vivíssimas das mirações: “Bebe o líquido / acessa o oco do coco / a ayahuasca é o cinema do caboclo”.
LA: Na música “Luz com trevas” você evidencia questões intrínsecas ao cinema e, subsequentemente, à imagem técnica, como nos versos em que ressalta a materialidade da linguagem cinematográfica [negativo/ positivo, luz/cinema], expandindo a compreensão desses conceitos em uma deriva poética. No entanto, a relação entre luz e imagem aparece também nos neons, recorrentes no projeto. Como você busca relacionar o neon com o cinema?
C: Estou ligado na escuta do cinema do mundo. Antes do mundo ser mundo era mudo, e quando se fez som. Do som fez-se luz, estrelas, mar, olho, pedra, areia, serpente, boca que fala palavra gás, gás neon dentro de tubos de vidro luminosos na fachada de uma loja, lanchonete, ou de um cinema apresentando “O Testamento de Orfeu”, obra-prima de Jean Cocteau, pura manifestação da poesia pela projeção da luz através de uma película numa sala escura. Luz/Trevas, Negativo/Positivo, Yin/Yang, opostos complementares que são o próprio cinema da criação. Do grego, criação é poema, e cinema, movimento, atributo do orixá Exu: princípio dinâmico e comunicativo entre os seres, as divindades e os ancestrais, portador do axé, senhor dos caminhos e das encruzilhadas. Exu promove os encontros e “coloca as coisas pra copular”, como na música EXUberância, que abre o disco. Encruza é também lugar de chegada, de consenso, de integração, onde saberes e perspectivas de mundo se complementam.
LA: O neon apresenta uma figura humana estilizada. Seu rosto pode aludir a uma máscara, elemento recorrente no projeto “Luz com Trevas”. Um raio paira acima de sua mão, com alusão pouco clara de sua origem. A iconografia gráfica pode remeter ao pixo, enquanto o neon remete a letreiros urbanos. A visualidade das cidades é um elemento importante do seu trabalho? Como a estética urbana ativa sua pesquisa poética?
C: Essa figura que você vê como humana, algumas pessoas veem como um macaco, outras um E.T. … Com certeza ela é todas elas, e muitas outras mais, talvez um elo entre o ser presente e um ser originário… alguém recebendo a força do mundo espiritual, um Buda, a súbita iluminação… e também uma referência a “Raio de Amor”, um funk dedicado ao grande xamã e liderança Yanomami Davi Kopenawa, e a todos os povos da floresta, sua sabedoria, seus encantos, e essa luta, que pertence a todos nós, contra a perversa ganância do agronegócio, madeireiros, grileiros e mineradores… Me interesso pelo rolê do pixo, mas nunca tive envolvimento. É uma presença marcante na paisagem urbana, assim como os letreiros de neon. Meu ateliê é o instante, o aqui e agora, e meu corpo imerso na cidade, é afetado por suas energias, suas manifestações, personagens, luzes, cheiros, sons, ritmos, cores, calores e sabores. A cidade, a rua, é também meu laboratório, mas nele não faço pesquisa, me entrego à experiência.
LA: A relação entre divino e profano é uma constante na instalação “Luz com trevas”, dicotomia esta que se faz presente neste neon: a iconografia do raio enquanto símbolo de uma relação das forças da natureza que se ligam ao humano se choca com a estética comercial do neon. Como você busca relacionar essas dicotomias em seus projetos?
C: Para mim não há dicotomia entre divino e profano. Tá tudo junto e misturado. A eletricidade do raio é a mesma que acende o desenho de neon.
LA: Como você vê o projeto “Luz com trevas” dentro da sua produção artística?
C: Luz com Trevas foi concebida para ser uma exposição, um show e um disco, que juntos formam uma só obra. O dia da abertura da exposição foi o mesmo do ato inter-religioso para Marielle Franco, e devido à proximidade geográfica entre a Cinelândia e o Largo da Carioca, formou–se uma conexão, um caminho imantado, com pessoas que iam de um evento ao outro, tornando a noite ainda mais intensa e escancarando a relação do contexto da mostra com o grave estado em que o Rio de Janeiro e o Brasil se encontravam, e ainda se encontram. Participaram da mostra pessoas que admiro e respeito, como Aderbal Ashogun, saudando Exu com o grupo Treme Terra, formado por ogãs do Ilê Omi Oju Arô, casa de candomblé fundada por Mãe Beata de Yemanjá, o DJ MSE, do coletivo de rap Bloco 7, dançarinas e dançarinos do Grupo Suave, Ed du Corte, mestre dos cortes “na régua”, o xamã Yanomami Davi Kopenawa, o Slam das Minas (coletivo de mulheres poetas), o músico e ativista Marcelo Yuka, o cineasta Emilio Domingos, o escritor Fred Coelho, entre outros. Trouxe para o espaço expositivo tudo que influencia meu processo criativo: nossas heranças indígenas e africanas, misturadas à cultura pop e à cultura de rua que sempre vivenciei. O próprio título da mostra, não é somente um nome, mas uma música, da qual fragmentos da letra inspiram a produção de objetos plásticos, como os Ovos-Bomba, esculturas-pinturas que ao serem abertas revelam toda sorte de materiais, como urucum, cúrcuma, capas e máscaras, que quando vestidas fazem os participantes ativarem o espaço ao som da música. Ao conceber o show, instaurei no palco o clima da exposição, com tecidos, desenhos, vídeos e esculturas. O disco segue o mesmo processo: revelar esse universo através do ritmo e poesia das canções: cinema sonoro expandido. Luz com Treva é a invocação da força e magia da poesia contra os podres poderes do Império, desta necropolítica; é a afirmação do encanto, dos cantos e tradições transmitidos pela oralidade, da vivacidade do corpo vibrátil e a liberdade da sua linguagem no seu ir e vir, corpo político, que afirma a vida, pois como dizem os pensadores Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino, “o contrário da vida não é a morte, mas o desencante”.
[Entrevista produzida no contexto da exposição Futuração, entre Março e Abril de 2021]