Lucas Albuquerque: Em “Lambada Estranha”, a localização tempo-espaço é dada ao espectador já no início do vídeo: a cidade é o Rio de Janeiro, o ano é 2020. As primeiras cenas não deixam dúvidas quanto à localização: um avião parece estar prestes a pousar no aeroporto Santos Dumont, tendo a ponte Rio-Niterói e a torre da Central do Brasil como anfitriãs. A imagem não parece guardar qualquer diferença visual com a cidade no ano passado, exceto pelo fato de que uma segunda imagem lembrando um desastre natural é sobreposta a ela. O espectador nota que esse tipo de interferência é utilizado como recurso ao longo do vídeo. Como se deu o processo de criação, filmagem e montagem do trabalho?
Darks Miranda: Há muitos anos tenho vontade de filmar uma ação que envolvesse pessoas que consideram que “não sabem dançar” – ou que dançam “estranho” – de costas para a câmera, movendo-se ao som de lambadas. Era uma ideia meio nonsense, mas eu sabia que me interessavam os movimentos dos corpos, uma certa indiscernibilidade dos corpos, um mistério, uma quebra do protagonismo de rostos, um estranhamento, alguma imprevisibilidade também. Tinha o desejo ali de possibilitar uma experiência meio formal e informe, ao mesmo tempo, que tinha a ver com corpos, movimento, dança, uma ação que poderia ser levemente esquisita sem ser grotesca. Me interessava um certo humor físico e desconcertante também. O tempo foi passando e eu acabei nunca fazendo esse trabalho, até que surgiu o edital do Abre Alas, da Gentil Carioca, e essa ideia foi uma das propostas que enviei. Xs curadorxs se entusiasmaram com a ideia, reuni amigues e decidi fazer. Foi tudo meio às pressas, porque tinha esse deadline da exposição. Só consegui realizar porque Herbert de Paz, Lorran Dias, Maria Mareda e Rafael Bqueer, pessoas muito queridas, toparam essa maluquice e performaram junto. Além disso, chamei a Vanessa Rodrigues, uma professora de lambada, pra nos ajudar com a proposição de alguns passos (que seriam totalmente e maravilhosamente deturpados pelas dançarines).Também o apoio dos amigos Tiago Rios, que emprestou a câmera, e de Sasha Lazarev, que fotografou, foi imprescindível. Além de Gabriel Tupinambá e Alex Barbosa que ajudaram na produção.
Pensei em realizar a ação em vários lugares: na encruzilhada da Gentil, na praça Tiradentes, num estúdio, no Fosso (ateliê que eu dividia com mais artistas), mas acabei decidindo filmar na piscina abandonada do prédio onde moro, em Santa Teresa, no Rio de Janeiro. E aí que, a meu ver, o filme foi tomando essa outra forma e foi somando a si mesmo outras questões: paisagem, cidade, horizonte, cosmos, apocalipse… aí que foi virando meio filme e deixando de ser um registro de uma ação ou performance. E o aspecto mais fantástico foi só aumentando a cada etapa: das roupas, aos efeitos, à edição de som.
LA: Uma aula de dança acontece dentro do que parece ser uma piscina sem água. Seres humanos estranhos vestidos com diferentes tipos de trajes tentam acompanhar as instruções de uma professora. O som da sua voz e da música é permeado por ruídos eletrônicos dissonantes e sons que lembram trovões, tempestades e explosões. Os seres parecem, entretanto, alheios ao ambiente caótico e surreal em que estão inseridos. De que forma é possível pensar “Lambada estranha” como metáfora a nossa relação com a pandemia que se instaurou sobre o planeta no mesmo ano de produção do vídeo?
DM: Acho que tenho dificuldade em pensar com metáforas… não foi intenção do trabalho, em nenhum momento, ser uma metáfora. A meu ver, ele é aquilo mesmo que ele mostra, e não está querendo dizer outra coisa por substituição, aproximação ou comparação. Eu filmei em janeiro de 2020, terminei de editar em fevereiro, e não tinha a menor ideia do que estaria pela frente, logo ali: a pandemia. Ao mesmo tempo, não é do ano passado que o estado das coisas está cada vez mais estranho: a situação política do país envolve, cada vez mais, sérias crises ambientais e sanitárias. Naquele momento estourou a crise da água no Rio, que já era uma crise sanitária grave, antes da Covid – não tão fatal e destruidora quanto, mas ainda assim grave. O filme foi feito também antes do ápice das queimadas no Pantanal, mas, ainda, não é de hoje que está havendo incêndios pelo país: Na Amazônia, no Museu Nacional, no MAM, na UFRJ. Então, nesse sentido, a falta de água, a contaminação da água, e os incêndios, o fogo, não são metáforas; são a nossa realidade. Ao mesmo tempo, o filme não é um documentário, e também não é uma ficção realista, não faz uso de efeitos caros ou bem feitos, porque 1, eu não tinha um centavo pra fazer e nem tenho a técnica, e 2, porque, apesar de totalmente inspirado e espelhado na realidade, a estética do realismo não estava me interessando ali. Pelo contrário, parti de um entendimento de que diante da situação real do mundo, é impossível não delirar. Então o filme é uma espécie de delírio a partir do real, mais do que uma metáfora.
LA: A aula de “Lambada estranha” parece estar dividida em partes bem marcadas por diferentes “lambadas”: “Adocica” embala o grupo dentro da piscina com xs alunxs de costas, “Lambada (Chorando se foi)” marca o foco frontal em cada alunx por alguns segundos separadamente ainda com a piscina como fundo e, finalmente, “Dançando lambada” marca a filmagem dxs dançarinxs de baixo para cima, em um cenário em que a piscina cede lugar a um fundo techno kitsch futurista, típico das “aparelhagens” da região norte do Brasil. Por que o deslocamento de foco do grupo para o indivíduo? De que forma permeiam o trabalho questões que envolvem os corpos, suas diferenças e o estabelecimento de supostas hierarquias entre eles?
DM: O deslocamento de escalas não estava previsto antes da filmagem. Meu interesse sempre foi filmar esse grupo, esses corpos, juntos: descompassados, desconjuntados, estranhos e inventivos – possivelmente engraçados. O plano conjunto, que é filmado frontal, na altura dos corpos, era o plano que eu sempre tinha imaginado para essas imagens que seriam o registro de uma dança esquisita. Foi só no meio da filmagem, depois que já tínhamos feito os planos abertos, que decidimos filmar cada pessoa “solando”. Mesmo depois disso, ainda tinha dúvidas se usaria esses planos. Mas juntando tudo, na montagem, achei que valia a pena ter essas imagens mais aproximadas dos corpos, que é quando sai da paisagem “real” e a paisagem vira um cosmos, um outro delírio, que se assemelha também a uma coisa mais pop, quase um videoclipe mesmo, ou cenas de super heroínas. Achei que podia ser meio uma série de retratos dançantes de seres cósmicos, extraterrenos, fantasmas, fantásticos.
LA: A lambada enquanto dança teve origem na região Norte do Brasil e se tornou popular fim dos anos 1980, especialmente por conta do grande sucesso do grupo Kaoma. Depois de se tornar um fenômeno mundial, em grande parte impulsionado por investimentos estrangeiros, caiu no esquecimento geral. Por que a escolha da lambada para a aula de dança apresentada no trabalho?
DM: O que é louco é que a música Lambada (Chorando se foi), que foi o que supostamente deu início ao gênero musical, é uma versão de uma música popular boliviana mais antiga. E a versão brasileira, que foi o que estourou no mundo, foi gravada pelo grupo Kaoma, que foi formado a partir da ideia de dois produtores musicais franceses. Ou seja, mais uma vez um produto cultural que é lançado pro mundo como algo que é “a cara do Brasil” é no fundo uma grande mistura de cultura e imaginário “latinos” com um toque gringo que impulsiona o fenômeno. Mas para além dessas curiosidades, que aproximam a lambada de um imaginário de construção identitária brasileira que me intriga, o fato é que eu nasci numa década em que a própria lambada como conhecemos estava nascendo, e minha própria formação na infância e história pessoal foram afetadas pela lambada. Então não se trata de forma alguma de um deboche, de uma apropriação irônica e nostálgica dos anos 80 e início dos 90. Meu pai, que é músico, sustentava a casa como guigueiro de um cantor de lambada que fez sucesso na época, e cheguei a viajar com ele quando criança e ver alguns desses shows. Na época eu tive uma pequena comemoração de aniversário com o tema lambada. O ritmo era realmente algo que permeava a cultura brasileira muito intensamente, naquele momento.
LA: Como você vê “Lambada estranha” dentro da sua produção artística?
DM: O filme, em si, o trabalho Lambada Estranha, acho que é diferente das outras coisas que já fiz, mas também é uma espécie de mistura delas. Eu fiz minha primeira “ficção especulativa” em 2016, que foi A Maldição Tropical, uma viagem experimental sobre o museu e o fantasma de Carmen Miranda. Apesar de experimental, era bem mais narrativo que este trabalho da lambada. Eu nem sei se considero Lambada Estranha exatamente um filme. Não é Cinema, com C maiúsculo, definitivamente. É uma viagem que tem interesse em corpos e paisagem, ficção científica e delírio, catástrofe e invenção. Essas relações continuam me interessando e pretendo realizar mais coisas a partir dessa pesquisa.
LA: Como o seu trabalho abre possibilidades para a imaginação de outras realidades?
DM: É difícil pra mim falar sobre como meu trabalho especificamente abre essas possibilidades. Mas acho que a arte em geral, a ficção, a filosofia, as ciências, as magias têm uma capacidade grande de experimentação, especulação… E sinto que as pessoas que se interessam por essas experimentações têm ido atrás de formas possíveis e impossíveis de imaginar outras realidades. É algo que pode nos mover e motivar no meio desse caos que estamos vivendo, e que é causa não só da guinada autoritária e à direita na política do mundo, mas de um projeto de mundo, de destruição, extração e morte que é muito anterior, que é um projeto moderno de mundo. Acho que é importante demais, nesse momento, o esforço coletivo em imaginar outras realidades, mas talvez ainda mais importante agora seja o esforço coletivo e político de imaginar possibilidades criativas de lidar com esta exata realidade, que é a realidade presente, é a que nós temos agora.
[Entrevista produzida no contexto da exposição Futuração, entre Março e Abril de 2021]