Lucas Albuquerque: Em “@ilusão”, cadeias de palavras que remetem ao mundo digital e aos programas de computador aparecem de forma repetida do início ao fim do vídeo. Clicar, deslizar, arrastar, abrir, fechar, bloquear, desbloquear, assistir, ler, rotina, conexão, programação, usuária. Um olhar mais atento revela outras palavras sutilmente inseridas nessas cadeias e desconectadas do padrão: urinar, rir, sofrer, bocejar, fingir. De onde vem essa vontade de interferência e por que essa ação se faz necessária no trabalho?
Vitória Cribb: Durante o processo de desenvolvimento do filme, escrevi um texto intitulado “Para meu amigo algoritmo” para a segunda edição da publicação independente O Turvo, em que em parte do texto direcionava uma carta para o meu amigo algoritmo, “aquele que me entende tão bem”, à ponto de, a partir do meu comportamento online, me indicar conteúdos que eu supostamente deveria seguir e consumir. O texto submetido para a publicação é o mesmo utilizado sob as vestes e elementos cenográficos do filme @ ilusão. Ao escrever essa carta, que posteriormente se tornou uma interferência textual de comportamentos tecnológicos sob a representação imagética digital de um ser humano imerso em uma realidade online, no filme @ ilusão busquei explicitar visualmente como o comportamento tecnológico perpassa a nossa pura interação com a tela, mas também se faz cada vez mais presente nesta simbiose entre tecnologia e ser humano. Essa simbiose é refletida diretamente no nosso comportamento natural, acarretando uma inserção cada vez mais forte do uso do celular em nossos hábitos banais e comportamentos casuais, a urgência provocada pelas notificações diárias pela manhã, o uso do celular no banheiro (urinar), o uso de redes sociais como refúgio de síndromes como a insônia (bocejar), o uso de redes sociais e captura instantânea de imagens para interpretar personagens de nós mesmos para apresentar aos outros na rede (fingir).
Resumidamente: a interferência textual sob a personagem principal, que se assemelha à figura humana, com palavras de ordem comportamental tecnológica – como as palavras clicar, deslizar, arrastar e abrir – referentes aos nossos atos diante da tela do celular, computador ou outro aparato tecnológico que nos conecta em rede, surge como forma de deixar a simbiose presente entre tecnologia e ser humano mais evidente. Como o filme @ ilusão permeia narrativas e sensações que se dão devido ao encontro entre ser humano x rede online e o uso de plataformas de comunicação online de forma cada vez mais intensa, busquei maneiras de conectar a figura humana inserida em um contexto digital justamente com a tecnologia que a circunda, durante o processo de criação do filme @ilusão. Atento que nenhum dos termos foi usado com intuito ou cunho moralista e sim como reflexão, dentro de um contexto social cada vez mais conectado que fazemos parte e que me afeta subjetivamente.
LA: A dualidade entre imaterialidade e materialidade pode ser percebida no trabalho quando, a ponto de sufocar num mar de palavras, a voz confessa que pretende fazer “uma detox virtual”, enquanto uma minitela revela uma mão que toca, enrola e estica uma massa rosa. Mais adiante, o avatar da figura feminina negra que protagoniza o trabalho tem seu rosto moldado e desfigurado pelas cadeias de palavras que o circundam em looping infinito. Como se desintoxicar virtualmente quando algoritmos de computador que aprendem sobre seus usuários com os próprios usuários, condicionando seus corpos e seus desejos, se tornam cada vez mais inteligentes? Com quem ou com o que a voz está falando?
VC: No vídeo @ilusão não proponho responder ou dar nenhuma solução direta à construção em rede digital que se apresenta na contemporaneidade e sim partir para uma reflexão subjetiva sobre um evento presente, atual e histórico que é o aumento da comunicação online.
Os vídeos da mão que estica e trabalha a massa rosa representa um determinado tipo de conteúdo amplamente divulgado em redes sociais que são os vídeos de slime, que servem tanto para diversão quanto para relaxamento ou curiosidade. Então, mais do que uma proposição, o trecho “detox virtual” reforça a dualidade presente entre a necessidade de se comunicar coletivamente através da internet. A exaustão advinda desse comportamento também se apresenta como forma de ironizar a impossibilidade de fazer uma detox virtual em um contexto social onde relações interpessoais são automatizadas e conectadas via rede digital.
A voz presente no vídeo está em diálogo com o receptor da mensagem (cabe aqui o outro ou a própria máquina que se insere como intermediária desse “diálogo unilateral”). A comunicação unilateral e informal dá o tom à narrativa do vídeo, que busca frisar justamente a impessoalidade e os ruídos de comunicação existentes na interação online diariamente quando tentamos nos conectar com o outro.
LA: Duas mini telas abertas na tela principal parecem fazer referência e querer comentar sobre o próprio processo de criação do trabalho. Como se deu esse processo e qual a importância da metalinguagem na sua obra?
VC: O processo de criação deste trabalho se deu na Residência online do espaço independente Olhão (SP), na primeira semana de julho de 2020. O processo de criação/produção do trabalho poderia ser explicitado nos stories da plataforma no Instagram durante a semana de imersão, a partir disso optei por expor minha pesquisa e relações entre os temas abordados nos stories do Olhão.
Enquanto produzia a parte visual do filme @ ilusão, entendi que trazer esse processo de pesquisa e explicitação do processo que ocorreu no ambiente online da rede social do Olhão para dentro do próprio vídeo fazia sentido, já que a narrativa do filme é uma reflexão do espaço digital. A inserção de “telas dentro da tela do vídeo” atua justamente como uma metalinguagem processual, evidenciando o formato que a minha pesquisa foi desenhada e desenvolvida dentro do próprio trabalho, reforçando a ideia de imersão digital e online com a representação das telas submersas em um oceano violeta, como se todas as informações do processo de desenvolvimento estivessem mergulhadas nesse vasto oceano digital que nos circunda.
LA: O rosto do avatar em “@ilusão” passa repetidamente da serenidade ao estarrecimento e à raiva. O vídeo encerra com a imagem desse rosto congelado em um grito que parece nunca terminar seguido, então, da frase “em memória daqueles que não puderam apertar o shuffle e tiveram suas vidas retiradas pela repetição mortífera”. De que forma esse avatar pode ser entendido como lugar de representação desses indivíduos? “@ilusão” pode ser considerado um autorretrato?
VC: Não acredito que a caracterização étnica da personagem seja um ponto de destaque na obra. Essa caracterização étnica do personagem perpassa a questão da violência e se insere principalmente na relação contrastante que um corpo negro carrega ao se inserir em um contexto de “novas tecnologias da comunicação e visualização”.
Além disso, o trabalho aborda diretamente a repetição algorítmica no espaço online e digital, mas também a repetição mortífera que acomete corpos negros diariamente no nosso país devido às questões sociais e estruturais presentes advindas de uma história colonial. As expressões carregadas pela personagem representam principalmente a confusão mental consequente dessa interação massiva em um período tão instável e vulnerável da sociedade.
Não considero a obra um autorretrato direto, pois não busco me representar genuinamente no que tange à representação anatômica e visual. Mas, sem dúvidas, @ ilusão é um retrato da minha subjetividade e um recorte das minhas reflexões diante da minha trajetória pessoal, artística e, também, como profissional da tecnologia em um contexto de crescente comunicação massiva online.
LA: Como você vê “@ilusão” dentro da sua produção artística?
VC: O núcleo da minha produção artística parte da exploração de técnicas mais recentes não tradicionais e digitais, também conhecidas como new media, com foco na visualização e conceituação a partir do grafismo digital tridimensional (3D), técnica recorrente nos meus trabalhos autorais.
Enxergo o trabalho como uma reflexão direta do presente tecnológico que se insere massivamente na contemporaneidade mundial e da relação entre humanos x conexão x internet x tecnologia da comunicação. Acredito que exista uma conexão quase direta com o meu filme Prompt de Comando, 2019 – onde relaciono a minha existência enquanto mulher negra com a existência de um robô que está para servir as vontades humanas. O filme @ ilusão também parte dessa reflexão entre minha existência e as similaridades com o funcionamento digital e online e como minha subjetividade é afetada por esse movimento atual.
Especificamente no trabalho @ ilusão, parto da premissa referente à repetição constante de conteúdo nas plataformas digitais e relaciono esse evento com a repetição da violência contra corpos negros no Ocidente. Por isso o trecho ao fim do vídeo “Em memória daqueles que não puderam apertar o shuffle e tiveram suas vidas retiradas pela repetição mortífera”.
LA: Como seu trabalho abre possibilidades para a imaginação de outras realidades?
VC: Acredito que o meu trabalho possibilita uma extensão da própria realidade individual e coletiva. Ao trazer visualidades surreais que beiram ao realismo, mas se distanciam da representação real por conta do elemento digital/tecnológico, acredito que minhas proposições permitam um outro olhar sob a mesma realidade vigente potencializando movimentos já em curso, no caso a inserção da tecnologia visual e de comunicação nas nossas vidas.
Em relação ao filme @ilusão, aqueles que se identificam com a repetição violenta em uma sociedade preconceituosa podem projetar sua realidade no trabalho, assim como aqueles que sofrem interferência cotidiana apenas conteúdos digitais podem projetar sua realidade nas duas repetições abordadas no trabalho.
Para mim, o trabalho permite uma imersão em um sentimento até então não definido por nós, sentimento presente na relação com a máquina.
[Entrevista produzida no contexto da exposição Futuração, entre Março e Abril de 2021]