Fundação Eva Klabin
Cobertor de Orelha
Vivian Caccuri
Dezenove de março de vinte24

Borrando as fronteiras entre ruído e música, forma e som, a artista paulistana Vivian Caccuri investiga relações sonoras e materiais. Com especial interesse nas formas culturais historicamente rebaixadas — como as aparelhagens que denotam manifestações musicais populares, instrumentos tomados como simplórios ou a repulsa que envolvem o zumbido de determinados insetos —, Vivian esculpe o tempo. Sua matéria-prima, o som, só existe a partir da sua propagação em moléculas de ar que vibram, umas com as outras, no sentido de uma ampliação esférica. Tal característica é tida como axioma para a o sistema inerente à sua obra, cuja cadeia de agências interpela o outro (que pode ser um humano, animal, robótico, ou mesmo um elemento ou material inorgânico) numa crescente, a ser conduzido como parte num todo emaranhado; conectado por vínculos sociais, temporais, espaciais e, acima de tudo, sensoriais. O torpor dos sentidos causado pela aversão às asas de um mosquito que sobrevoam um ouvido ou uma batida eletrônica de alta frequência são nivelados e tornados objetos de investigação, recontando histórias de suas origens e derivações ficcionais.

No percurso expositivo do programa Contratempo, duas obras são sintomas dos interesses da artista. Na primeira, Cobertor de orelha (2021), fios encerados seguram formas em aço e alumínio que se assemelham às orelhas humanas, desenhando, no ar, uma curva sinuosa que sobe e desce. Como uma onda sonora, essas formas tilintam ao se chocarem em virtude da presença do vento, provocado pelos movimentos do visitante ou por ações externas. A expressão que dá título à obra é popularmente usada para indicar uma pessoa que está deitada com a cabeça junto de outra pessoa abraçando-a, e através do calor humano, esquentando-a. Posicionada no centro do recinto, o pendente recorta o quarto, modulando o espaço e convivendo com o acervo de Eva Klabin, numa lúdica relação que entrecruza a figura do cobertor com a espaçosa cama ao fundo. Reflete, ainda, o desejo ambivalente inerente à missão de uma casa-museu: ouvir as camadas de tempo que perpassam cada um dos objetos, mas sem a inocência de saber que o passo do investigador perturba o silêncio.

Cacho 2 (2021), por sua vez, convoca o público à dança. Cordões sustentam fragmentos de ardósia, conchas marinhas e tubos de alumínio, que, ao serem manipulados, criam uma cadência de sons. Fruto do cruzamento e da observação de materiais frequentemente utilizados pela artista em séries anteriores, a forma é inspirada em cachos de frutas tropicais, sugerindo a abundância sonora que dá vida à cada ativação. Faz lembrar, ainda, os sinos do vento, comuns em casas populares ou de veraneio que funcionam como rastro sonoro da passagem de elementos, visíveis ou não. Surge, assim, mais uma tentativa de construir laços mediados pelas vibrações moleculares calcadas na excitação da matéria suspensa e do tímpano auricular.

A arte torna sensível aquilo que não é do universo da percepção, e assim faz audíveis as forças não audíveis, acreditava o filósofo francês Gilles Deleuze (1995–1925). Em sua concepção, o compositor seria aquele que revela as forças do tempo, da gravidade e da germinação, fazendo com que se transformem naquilo que ouvimos. Ao criar camadas de compreensão no curso das ondas da história ou mesmo ficcionalizar notas de um tempo cujo resultado permite novas maneiras de vislumbrar — e, por que não, brincar — o mundo, Vivian explora um outro espaço, cuja duração não é mensurável. Ele não passa, escorre.

Assine minha newsletter:
Conteúdo relacionado
LUCAS ALBUQUERQUE