Gosto de pensar em Gilson como um alquimista. Longe de uma compreensão mística dessa figura, a alegoria me serve para entender a sua prática em torno de seus materiais. Tal qual a busca pela pedra filosofal — símbolo central e superior da terminologia alquímica, a substância mítica seria capaz de transformar metais básicos em nobres, ou mesmo atingir a imortalidade humana —, o olhar de Gilson trabalha com sumária atenção e cuidado com objetos que nosso tempo relegou à banalidade, como vergalhões, metais e pedras. O artista afirma a cada criação a potência da transmutação no objeto de arte, seja ela visível ou não. Somada a essa comparação, um dado de realidade: Plano é filho de mãe costureira e pai pedreiro. Transmite a sabedoria deles, manejando e equilibrando pedras brutas na delicadeza de um fio de linha.
Para o programa Contratempo, foram escolhidas miscelâneas de trabalhos do artista que orbitam entre materiais “brutos” e nobres, distinção suspensa em seu trabalho. Em Depois da água a terra (2021), um bloco de ardósia serve de superfície para a formação de ilhas resultantes do calor de duas lâmpadas sobre a fina camada de encáustica que recobre a peça. Se a pedra faz menção à casa de Plano — sua recorrência no uso doméstico é tão comum a ponto de tornar o Brasil o segundo maior consumidor mundial —, o surgimento das ilhas repensa a dimensão da travessia oriunda da história afro-brasileira, que se estendeu sobre as águas e continuou no território brasileiro. O “Brasil profundo que engole as luzes que são lançadas sobre ele” é sentido sob a sola de seus pés, ao andar na ardósia ainda criança; estima-se, contudo, que o mineral extraído hoje começou a se formar durante o Paleozoico Inferior (período definido entre 417 e 545 milhões de anos atrás). Tornado índice das migrações afro-atlânticas, sua presença tangencia aqui uma escuta expandida e silenciosa.
Os desenhos Calor sem luz #5 e #6 (2022) perfuram o banheiro e o boudoir, como duas vistas de um grande lago ou rocha — à semelhança dos elementos naturais de tais formas abstratas. Peças obtidas também através do calor, mas, dessa vez, de sua fonte primária: o fogo. Posicionados paralelamente em lados opostos da mesma parede, a aparente translucidez da gravura parece deixar entrever faces de um mesmo objeto, realizando um corte simbólico na arquitetura da casa. Já no Closet, a instalação Dois pesos (2024) simula a queda de 200 pérolas negras e 200 esferas de chumbo dispostas pelo chão do recinto e do armário. É irmã da instalação O sol depois (2020), em que Plano dispõe 152 pérolas nas paredes do pavilhão de exposições do Museu de Arte do Rio, cobrindo e recobrindo cada pérola inserida na estrutura arquitetônica. Aqui, neste museu-casa, o artista põe seus materiais à prova do olhar para ressaltar a ausência de um outro dado — o movimento de vida. Ao integrar o som da queda, reaviva a imanência de uma energia que vibra nas roupas expostas, tornadas objetos de pura contemplação depois do falecimento de Eva Klabin.
Em diferentes operações, inversões de peso e materialidade são obtidas com os deslocamentos e usos propostos por Plano. Se, em um primeiro momento, a presença do hóspede é passível de estranheza por parte das peças que habitam originalmente a coleção, a transmutação ocasionada pelo cruzamento material, espacial e temporal entre ambos não só reaviva memórias adormecidas, como também libera a casa para as aventuras da ficção.