Lucas Albuquerque: Em “Ar em pedaços”, a imagem de um membro inferior supostamente humano tem seu fêmur parcialmente exposto e conectado a um osso descarnado, que por sua vez está conectado a outra estrutura óssea que lembra um crânio animal. Essa, então, se conecta a uma estrutura mecânica articulada que, por fim, se conecta ao pé do mesmo membro inferior. Olhares mais apurados encontrarão referências a iconografias presentes na pintura a óleo ocidental, como “vanitas”, por exemplo, e serão remetidos ao gênero da natureza morta. De que modo você busca utilizar a história da arte ao lidar com a complexidade contemporânea?
Eduardo Berliner: Quando me sinto sensibilizado por uma obra, não importa a época em que ela foi feita, ela passa a existir em mim, no presente, como as palavras de uma pessoa querida que já não está entre nós.
Não tenho um interesse específico no gênero histórico da natureza morta. Meu olho precisa de um ponto de foco anterior à narrativa. Gosto de poder estar apenas diante de algo. Dar forma a um estado de espírito. Porém, um problema interessante vem à tona nesse tipo de pintura, quando uma atmosfera emerge de cores, luminosidade, relação entre a tinta, o suporte e a pincelada. São coisas que não possuem um endereço claro na memória. Ao final, estamos olhando para a representação de algo no mundo, mas nosso pensamento se volta para dentro e traz de lá algo que não poderíamos antecipar. É parecido com a lembrança tênue de um sonho que desaparece assim que abrimos os olhos.
LA: Em sua conta no Instagram, há uma postagem sobre o processo de criação do trabalho onde podemos observar alguns desenhos e uma instalação com objetos do cotidiano (mesa, vaso de plantas, galhos secos, a perna de um boneco), além de ossos que parecem reais. O uso intensivo dos cadernos de desenhos, de diferentes escalas e configurações, é, sobretudo, uma constante em sua produção. Como se deu o processo de criação de “Ar em pedaços” e de que forma materiais como desenhos e instalações se relacionam com a execução da pintura?
EB: Há muito tempo acumulo centenas de fotografias e objetos no ateliê, que se estragam ou ficam soterrados, mas que também, gradualmente, se reordenam ao acaso. Às vezes, no começo do dia, não tenho um plano claro do que irei fazer, mas desenho com frequência, e em alguns casos, algo no desenho serve como ponto de partida para uma pintura. Então escavo a tinta que ainda não secou completamente sobre uma paleta, apanho alguma coisa das pilhas enormes de fotografia e olho para as imagens procurando alguma coisa que me atraia antes mesmo que eu entenda o motivo. Outras vezes, manipulo objetos recém-chegados ou que já habitavam o ateliê. Insetos, ferramentas, garrafas, um peixe… não faz muita diferença. Para mim, o importante é que alguma coisa impeça a minha intenção de se realizar de maneira linear. Preciso de algo que não possa antecipar. Algo que ganhe forma à medida que objetos, imagens e fragmentos entram em contato, guiados pelas mãos, pelos olhos e pelo acaso. Normalmente, o acaso é o que mais se aproxima do que eu queria dizer mas não sabia.
Comecei a pintura “Ar em pedaços” tentando erguer a perna de um boneco que não tinha corpo. Coloquei o modelo de um osso humano em escala reduzida no seu interior e, para equilibrar o conjunto, utilizei uma pinça de metal, parecida com um braço mecânico (uma ferramenta chamada “terceira mão”). Olhei e achei interessante o equilíbrio precário da estrutura. Depois de um ou dois desenhos, gostei da maneira como a forma recortava o espaço do papel e pensei que poderia funcionar como ponto de partida para uma pintura de observação. Mas escolhi uma tela de 250 x 180 cm e assim acabei inserindo meu próprio corpo no trabalho, visível na escala das pinceladas e em outras marcas do uso da tinta.
O conjunto sofreu acidentes ao longo da pintura, pois algumas partes caíram, mas outras mudanças foram intencionais, como quando girei o acento do banco em busca de outro ponto de vista para determinado objeto. O giro criou uma espécie de movimento anacrônico, considerando que até então um dos eixos da pintura era uma perna inerte e a composição tinha em si algo de estática.
O último objeto a entrar no quadro foi o vaso de vidro com uma planta seca. Achei que o espaço estava um pouco achatado, mas não queria inserir outro elemento. O vaso criou afinal um espaço ambíguo, pois, dada a transparência, o vidro cria uma presença fantasmática.
LA: Sua obra tipicamente flerta com o estranho, o surreal, o inexplicável, embora possamos encontrar nela referências a motivos banais que você afirma serem material para a composição do trabalho: cenas do cotidiano, objetos encontrados nas ruas, fotografias, vídeos etc. Em “Ar em pedaços” todos esses elementos parecem ter seu lugar, compondo uma imagem sustentada por uma espécie de circularidade (ou ciclo) carregada de dualidades, como vida/morte, natural/ artificial, homem/máquina, homem/animal. A dualidade que compõe a tela parece encontrar sua estrutura também no título do trabalho, no qual a imaterialidade do ar se confronta com a solidez do pedaço, do fragmento. Como surgiu esse título e qual a importância dessas dualidades no trabalho?
EB: Normalmente, com o intuito de manter o foco na pintura, procuro dar títulos descritivos, que não interfiram na obra. No entanto, em alguns casos, pode ser que eu continue o raciocínio da obra no próprio título. “Ar em pedaços” não é uma coisa nem outra; ele é um título que descreve a obra através de sua inversão. O vidro é a única coisa aparentemente íntegra do quadro, mas as palavras antecipam a fragmentação do que as imagens mostram. Uma espécie de risco eminente, ou de dor silenciosa.
LA: Em 2020, ano de produção do trabalho, fomos atingidos por uma pandemia que alterou nossas relações com o outro, o tempo e o espaço. Como tem sido estar e trabalhar no ateliê, lugar tão caro para você, durante esse período?
EB: Tive o privilégio de poder continuar a trabalhar em casa nos primeiros cem dias de pandemia. Para não prejudicar minha família com o cheiro da tinta, trabalhei apenas com desenhos e aquarelas. Desenhando eu não enlouqueço, pois converto em algo visível e passível de ser avaliado o que na cabeça é disforme e nebuloso. Mas nesses meses dominados pela necessidade de limpeza, passei a sentir falta do ambiente caótico do ateliê, onde o próprio espaço cria problemas e relações improváveis que me ajudam a pensar e fertilizam a minha pintura. Como trabalho sozinho, pude voltar gradualmente ao meu espaço natural de trabalho, o que foi um respiro, porque quando trabalho em formatos maiores penso também através do meu corpo. Além disso, meu processo de trabalho se vale da diferença entre meios e de mudanças repentinas de materiais e escala que criam uma contaminação saudável entre elementos e me dão a distância necessária para refletir sobre obras em andamento. Também sinto falta de tomar café da manhã na padaria e conversar horas a fio com um amigo, compartilhando o silêncio e o pão. Passar o tempo despreocupado e deixar os eventos mundanos direcionarem o diálogo. Poder olhar juntos.
LA: Pode falar um pouco do lugar da natureza morta dentro de sua produção, utilizando este trabalho como ponto disparador?
EB: Quando pinto de observação pequenas naturezas mortas, percebo que, no processo de criar uma equivalência visual entre o mundo no qual estou inserido e uma superfície bidimensional, a pincelada e a luminosidade da tinta ganham vigor e intensidade, e a pintura em si adquire um caráter sinestésico que me interessa. “Ar em pedaços” é uma tentativa de transpor essa mesma atitude para uma pintura de grande formato.
[Entrevista produzida no contexto da exposição Futuração, entre Março e Abril de 2021]