Há uma fábula que toca muito perto do âmago da vida — a fábula do monge que, ao caminhar por uma floresta, ouvira um pássaro romper um canto, apreciando-o ao longo de um ou dois trinados e, ao retornar, se viu como um estranho nos portões do convento; pois ele esteve ausente por cinquenta anos e, de todos os seus camaradas, sobrevivera apenas um, que o reconheceu. […] mas as notas sonoras daquele rouxinol devorador de tempo não obtivemos notícias.
Robert L. Stevenson, The Lantern-Bearers, 1887
No fio cortante do canto do pássaro que preenche a instalação A materialização do canto da mãe da lua (2022), ecos dos percalços das ditaduras latino-americanas se apresentam em uma narrativa tanto particular como compartilhada. O rastro de luz baixa que recorta a instalação revela de maneira precária a composição material: separados por três calibres de balas usadas e seus respectivos trajetos, tornados matéria em cobre maciço, encontram-se dois retratos de médio formato. O primeiro, do lado esquerdo, representa um militar em pose austera; formado por uma massa de tinta que não aguenta o enquadramento barroco e escorre pelas bordas, desmanchando-se; o segundo, do lado direito, apresenta meio corpo de uma noiva, trajada em vestido de renda, que carrega um buquê floral ao centro de seu ventre. Ela tem sua face recortada pela parte superior do quadro, permitindo ver apenas o seu queixo. A tela se ajusta com notável dificuldade em uma moldura maior que o seu formato, e sua massa converge, no sentido da gravidade, para uma miniatura de uma igreja, um tanto quanto modesta, colocada logo abaixo sobre um aparador de parede. Uma igreja branca como a vestimenta da retratada. Mais à direita na parede, um colar dourado com um pingente redondo em seu centro. Abaixo, um pequeno oratório revela um bueiro do qual, engaiolado em seu fundo, um canto de urutau ecoa.
Gosto de pensar na pintura de Griffo como massas de tinta impregnadas de simbologias barrocas, cristãs e, por conseguinte, de uma iconofilia ímpar. Tal materialidade adensa o corpo pictórico com impastos que tornam o resultado da imagem instável, quase pronta a recair sobre o seu próprio peso. É ainda mais curioso notar pontos de cor divergentes que pululam dos gordos blocos de cor: aqui e lá, laranjas e magentas sugerem o início de um incêndio, pronto a consumir as imagens. Podemos também alçar voos maiores nessa relação entre instabilidade e figurativismo na maneira como determinadas figuras movediças, que se repetem em diferentes trabalhos; caso, por exemplo, da fusão oratório-ralo, materialização da figura que aparecerá, outrora, na pintura O vendedor de miniaturas (2020); ou, fazendo um grande salto, no título da instalação, semelhante à tela A exibição de Giotto/Gotejamento contínuo/A vocalização da Mãe da Lua (2014). O sistema referencial de Griffo parece funcionar como um inconsciente, que ora oscila entre as grandes estruturas da história da arte ocidental e as bases do ecossistema figurativo particular ao seu fazer. Nestes movimentos, o artista realiza incursões num tempo que mistura contos da realidade e elementos ficcionais.
Quero, contudo, ampliar o foco no pássaro mãe-da-lua, também chamado de Urutau, cuja presença nessa instalação transporta a compreensão de tal narrativa para significados mais que humanos. Comum da Região Amazônica, a Mãe-da-lua e seu canto melancólico é comumente associada a mau agouro pelas pessoas do campo. Seu lamento, de tom estridente e cadência decrescente, é tomado por determinadas culturas como presságio de morte ou um aviso de perigo iminente. Em seu hábitat natural, é conhecido por se camuflar em troncos e passar o dia inteiro absolutamente inerte na tentativa de fugir de seus predadores. Ainda que o prenúncio estabeleça uma relação evidente entre o sagrado e o poder ditatorial na história latino-americana, não desejo me estender nesse tópico para não recair em uma leitura simplificada. No entanto, preciso apontar a maneira como o elemento sonoro impõe uma suspensão temporal que coloca o visitante em estado de alerta. Escondido na sua habilidade de se ocultar no horizonte, a ave é testemunha da violência histórica, não apenas alertando, mas sobrevivendo como narrador.
Em consonância à instalação, a pintura O fim condizente com o começo 1 (2019) se apresenta à espreita, intensificando as relações entre o divino e o humano mediadas pela cultura material cristã. Nela, um conjunto de homens (que se dividem entre os “libertos” do fio que conduz ao corpo celestial e aqueles cuja linha os assemelha à fantoches) presta reverência a um imponente oratório. O móvel, que carrega em seu interior uma representação barroca dos céus povoados por anjos e em suas portas cenas de natureza-morta, é alocado em um estreito corredor de pedras e tijolos. Iluminado por uma canaleta de luz fria em LED, a opacidade dos muros contrasta com a janela do oratório, que aponta para o eterno além. Profana, assim, a esfera religiosa de recintos extremamente carregados por imagens e decorativismos sobre o qual o cristianismo fincou suas bases. O assombroso gesto de deslocamentos temporais proposto por Griffo em suas telas faz lembrar o pássaro erigido pelo poeta britânico Robert Louis Stevenson em The Lantern-Bearers (1887), um rouxinol devorador do tempo, que, em seu conto, transporta um pobre monge de 50 anos ao futuro sob o embalo de seu canto. E cá estamos nós, novamente, tratando de aves.